Kathleen Mansfield Beauchamp, nome original de Katherine Mansfield, nasceu em Wellington, Nova Zelândia, em 14 de outubro de 1888. Passou a infância em Wellington, depois viajou para Londres em 1903 com suas duas irmãs mais velhas para frequentar o Queen's College.
Depois da publicação de The Garden Party, Katherine Mansfield estava definitivamente estabelecida como uma das mais notáveis e revolucionárias contistas de sua geração. Adquiriu reputação internacional como escritora de contos, poesia, cartas, jornais e resenhas. Ela foi adotada pelos círculos artísticos baseados no Bloomsbury, grupo de artistas e intelectuais britânicos, mas nunca pertenceu a ele. Era uma mulher e, portanto, em certos aspectos, uma estranha em qualquer país. Além disso, era uma escritora inteiramente dedicada ao conto, que nunca teve a mesma reputação que o romance.
Mas esse livro sou eu!
Clarice Lispector, uma das mais importantes escritoras brasileiras, foi outra grande escritora do século XX que reconheceu o poder da escrita de Katherine Mansfield. Lendo a obra da neozelandesa pela primeira vez, Clarice teria dito que Mansfield era ela mesma. A “Clarice Lispector da língua inglesa” talvez seja uma boa forma de apresentar essa brilhante autora para o público de língua portuguesa. Muitos são os pontos comuns a elas – a obra literária com a perspectiva da mulher, o contemplar o cotidiano, as relações humanas, o uso inteligente do silêncio.
Clarice
descobriu, sozinha a obra
de Mansfield, ao retirar da prateleira de uma livraria a coletânea Bliss. Sem saber de quem se tratava,
começou a leitura ali mesmo, em pé, e não conseguiu parar, tomada por profunda
afinidade com a autora: “Mas esse livro sou eu!”, teria pensado diante do
volume de contos que adquiriu.
A tradução infeliz de Bliss
como felicidade
Érico
Veríssimo foi quem traduziu Bliss aqui no Brasil, em 1940, pela
Editora Globo. Mas foi infeliz ao traduzir Bliss
por Felicidade. Já Ana Cristina Cesar, poeta e tradutora, parece
ter acertado no alvo quando escolheu o termo Êxtase. Bliss é êxtase,
felicidade, alegria, arrebatamento, coisa divina, palpitação, frio na
barriga...
Ana mergulhou nas cartas e no diário de Mansfield enquanto trabalhava na tradução comentada de Bliss, que lhe rendeu o título de mestre em Teoria e Prática da Tradução Literária pela Universidade de Essex, na Inglaterra. A leitura fez a poeta brasileira perceber que na obra de Mansfield, como na sua, “ficção e autobiografia constituem uma única e indivisível composição”.
Seus contos e sua técnica de escrita
Considerada uma figura central no modernismo britânico, seus contos são inovadores, acessíveis e psicologicamente agudos, pioneiros na forma do gênero no século XX. Eles também são notáveis pelo uso do fluxo de consciência. Ela descreveu eventos triviais e mudanças sutis no comportamento humano.
Sua ficção, poesia, diários e cartas cobrem uma série de assuntos: as dificuldades e ambivalências das famílias e da sexualidade, a fragilidade dos relacionamentos, as complexidades e insensibilidades das classes médias em ascensão, as consequências sociais da guerra e, principalmente, a tentativa de extrair qualquer beleza e vitalidade da experiência mundana. Assim, ela rejeitou as convenções da narrativa altamente tramada com uma conclusão cuidadosamente elaborada, usando narrativa direta e indireta e uma rápida transição de tempos para fornecer constantes mudanças de perspectiva.
As reticências são um recurso frequente de Mansfield, por vezes como encerramento das narrativas. Elas apontam o descompasso entre a vida interior e a forma de expressá-la e os limites das introspecções dos personagens, como uma parede que não pode ser ultrapassada. É uma expressão da vida cotidiana mais pelo que é não dito do que pelo que é revelado, de modo que a alienação em relação a si mesmo é uma fuga bem-sucedida da infelicidade.
Seus personagens não ficam sob holofotes, ela apenas mostra a vida interior de cada um deles. Olhares, palavras, expressões faciais. Muitos assuntos atravessam sua prosa: conversas sobre sonhos e os íntimos da mente, típico de uma sociedade que despertava para o poder do inconsciente freudiano. Em especial, as mulheres que constantemente questionam seus lugares na sociedade. Em todos os escritos os críticos encontram uma profundeza enorme de observação; uma singela expressão do que há de intraduzível na alma humana e uma complexa feminilidade surpreendendo as estranhas raízes que a prendiam à vida.
Ela manipulou cuidadosamente o elemento autobiográfico em seu trabalho. A arte sempre transcendia a realidade, e eventos ou pessoas lembradas eram moldados para se adequarem à impressão que ela desejava transmitir. Seu apelo duradouro talvez se deva em parte ao fato de que no melhor de sua escrita, ficção ou não-ficção, ela comunica sua experiência individual de tal forma que diferentes leitores podem se identificar com ela.
A escrita é convertida em exercício
ficcional. Com isso, a escritora estabelece seu olhar sobre as coisas, dá forma
a sensações causadas por pessoas e lugares, revela – a si mesma e aos outros. A
atividade literária é o motivo principal de suas reflexões no diário e nas
cartas.
Uma vida errante e desordenada
De volta à casa paterna, em 1906, com 18 anos, veio infeliz, mal-humorada e rebelde. Wellington era uma província para uma moça, já meio desordenada que, depois de dois casos de lesbianismo, um obscuro incidente com um marinheiro e a morte da adorada avó. Em 1908, ela convenceu seu pai a deixá-la retornar a Londres. Em julho do mesmo ano, deixou a Nova Zelândia. Levava na cabeça farto material que mais tarde usaria em seus contos. Em Londres iria viver, segundo um de seus biógrafos, “uma vida errante e desordenada”.
Seu primeiro ano foi um desastre. Quando era estudante no Queen’s College, teve um romance com Arnold Trowell, um jovem violoncelista. Na volta a Londres, este amor tinha esfriado e foi transferido para seu irmão gêmeo, Garnet Trowell. Ela continuou a se corresponder com Arnold e formou uma estreita amizade com uma jovem alta e desajeitada, Ida Baker, a quem rebatizou de Leslie Moore ou LM, com quem teve, dizem, um caso de amor passageiro.
O seu relacionamento com Garnett, resultou em gravidez inesperada
e ela, inexplicavelmente, ficou noiva de George
Charles Bowden, um professor de canto. Casaram-se em 2 de março de 1909 no
cartório de Paddington, vestida de preto, com Ida Baker como testemunha. Abandonou-o na noite de núpcias, enojada
sexualmente. Tudo isso em apenas três semanas.
Ida Baker conta que, no início de 1911, a amiga aparentemente pensou que estava grávida e escreveu várias vezes para Garnet, mas sem resposta. Em abril de 1911, LM abriu uma conta bancária para ajudá-la com o bebê. Depois disso, LM embarcou para a Rodésia para visitar seu pai. De volta, cinco meses depois, Baker não encontrou “nenhum bebê e uma conta bancária fechada”. Elas nunca discutiram o assunto.
Embora tenham sido lançadas dúvidas
sobre a veracidade desta versão dos eventos, pode ser que algumas experiências
no final da primavera de 1911 tenham contribuído para as visões ambivalentes de
relacionamentos e parto que são evidentes em seu trabalho neste momento e em
histórias posteriores, como Esta flor.
Seis meses solitários na Alemanha
Alarmada com esses desenvolvimentos,
sua mãe, Annie Beauchamp, viajou para
a Inglaterra e a levou, incontinenti, ao spa de Bad Wörishofen, na Alemanha, a fim de tratar-se e ter o filho. Deixou-a
por lá prometendo esquecê-la pelo resto da vida! E foi o que fez.
Na Baviera, Katherine sofreu um aborto espontâneo, embora existam dúvidas a respeito da sua gravidez. Os seis meses solitários na Alemanha, foram a base para as histórias publicadas em 1910 e 1911 no periódico literário The New Age, editado por AR Orage. Muitas delas têm uma narradora jovem, e quase sempre, as personagens femininas estão sozinhas, vulneráveis e ingênuas, questionando seu papel na sociedade e o duplo padrão que permite aos homens desfrutar dos prazeres sexuais enquanto as mulheres sofrem as consequências.
Ao retornar a Londres, Mansfield ficou
doente com uma doença sexualmente transmissível não tratada que ela contraiu de
Floryan Sobieniowski, uma tradutora emigrante
polonesa que conheceu na Alemanha. Isso contribuiu para sua saúde fraca pelo
resto de sua vida.
John Middleton Murry, seu segundo marido e futuro editor
Em 1911, ela conheceu o estudante de
Oxford John Middleton Murry, editor da
revista Rhythm, escritor e
socialista. A convite dela, ele se tornou seu inquilino, depois seu amante.
Os dois anos seguintes foram importantes para o crescimento de Mansfield como escritora – ela publicou várias histórias com temas neozelandeses – mas havia constantes preocupações financeiras e frequentes mudanças de endereço. Juntos, editaram o Rhythm e Blue Review, mas não conseguiram evitar a falência de Murry, que se seguiu à sua estadia em Paris no final de 1913. Foi somente depois de 1917, frente ao profundo choque que lhe trouxe a Primeira Grande Guerra, com a morte do irmão querido, que o seu verdadeiro gênio iria se manifestar em toda a sua amplitude com o conto Prelude.
Cada vez mais Mansfield exigia amor e
atenção incondicionais, que Murry muitas vezes não conseguia fornecer; foi LM
que ofereceu devoção inquestionável e apoio prático. Pelo resto da curta vida
de Mansfield, Murry e LM foram indispensáveis para ela,
mas por razões diferentes.
Mansfield e Murry muitas vezes viviam
separados por longos períodos, mas correspondiam-se fielmente. Além de escrever
centenas de cartas, em parte como substituto da conversa, Mansfield enchia
cadernos e blocos de anotações com pensamentos, sentimentos, rascunhos de histórias,
observações e ideias.
Intensa produção literária, apesar da doença
Sua primeira hemorragia tuberculosa ocorreu em fevereiro de 1918. Assim começou sua corrida contra o tempo: Como seria insuportável morrer – deixar 'restos', 'pedaços'... nada realmente acabado. Embora sua tuberculose estivesse pior, ela se recusou a entrar em um sanatório. Em vez disso, em setembro de 1919, no início do inverno inglês, ela se mudou com LM para Ospedaletti, uma comuna italiana da região da Ligúria, província de Impéria. Sua decepção com a passividade de Murry e a aparente relutância em apoiá-la a levaram a escrever "O homem sem temperamento" em janeiro de 1920.
Mansfield mudou-se novamente em maio de 1921 para a Suíça. Murry desistiu da editoria do Athenaeum para ficar com ela. No Chalet des Sapins, Montana-sur-Sierre, ela escreveu algumas das histórias mais famosas da Nova Zelândia: 'Na baía', 'A festa no jardim' e 'A casa de bonecas'. Os dois primeiros foram publicados em The garden party e outras histórias em fevereiro de 1922.
Apesar do estado avançado de sua
tuberculose, Mansfield planejou outra série de 12 histórias conectadas que
formariam a seção principal de um novo livro, tornando-se assim a terceira
parte da história que começou com 'Prelude'
e continuou em 'At a Baía'.
A cura da alma e não do corpo
Influenciada por pensadores místicos como PD Ouspensky, ela estava convencida de que, para recuperar a saúde e cumprir suas ambições, deveria tentar curar a alma, não o corpo. Estava determinada a escrever histórias livres de cinismo, a levar um novo tipo de vida, a se tornar "uma filha do sol". Em outubro, ela entrou no Instituto para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem de GI Gurdjieff em Avon-Fontainebleau, perto de Paris. Suas últimas cartas para sua família, LM e Murry, mostram que naquela comunidade ela finalmente encontrou algo da resolução que procurava.
Murry a visitou em 9 de janeiro de
1923. Naquela mesma noite ela morreu de hemorragia pulmonar, aos 34 anos, no Instituto Gurdjieff, perto de
Fontainebleau, França. Suas últimas palavras foram: “Eu amo a chuva. Eu quero a sensação disso no meu rosto.”
Publicações póstumas
Katherine deixou seus manuscritos,
cadernos e cartas para seu marido para sua disposição, com um pedido para que
ele "deixasse tudo justo". No que foi visto por alguns como uma
traição a essa confiança, Murry usou seus papéis seletivamente para compilar The journal of Katherine Mansfield em
1927.
Em 1939 ele selecionou mais material
das mesmas fontes para produzir The
scrapbook of Katherine Mansfield, e em 1954 ele publicou uma ampliação,
chamada 'edição definitiva'. Ele
também publicou dois volumes de As cartas
de Katherine Mansfield em 1928, e as
cartas de Katherine Mansfield para John Middleton Murry, 1913-1922 em 1951.
Ironicamente – pois Mansfield havia se descrito como “uma criatura secreta até meus últimos ossos” – seus comentários e reflexões mais particulares, o diário, as cartas e o álbum de recortes foram editados por seu marido, que ignorou seu desejo de que ele “rasgasse e queimasse o máximo possível” os papéis que ela deixou para trás. Mas, o marido, gerenciando a obra da mulher, andou censurando trechos de seu diário e cartas inteiras de sua correspondência, tentando apagar qualquer imagem “negativa” da vida de Katherine.
Havia uma dupla ironia, pois a cuidadosa edição de Murry dava a impressão de que ela era impecável; em fevereiro de 1923 ela já estava sendo descrita como "a mais santa das mulheres". Murry conseguiu criar um culto à personalidade, e isso sem dúvida contribuiu para o crescimento da reputação internacional de Mansfield após sua morte. Ele entendeu que os escritos que ela deixou, eram reais espontâneos, os mais vividos, os mais delicados e os mais bonitos, que os ingleses podiam ler no começo do século XX.
Katherine Mansfield foi vítima da tuberculose, assim como a ucraniana Marie Bashkirtseff e a japonesa Higuchi Ichiyô. Todas elas, além da brasileira Carolina Maria de Jesus, deixaram seus diários.
Links utilizados e sugeridos
Katherine Mansfield – House and garden
Tradução de Bliss por Ana Cristina Cesar