sábado, 12 de março de 2022

MARIE BASHKIRTSEFF – SEU DIÁRIO E A BUSCA INCESSANTE DA FAMA

 




A busca incessante da fama


Na postagem anterior, falamos sobre a busca incessante de Marie Bashkirtseff pela fama e pela posteridade. Fizemos uma breve introdução sobre o seu Diário e os últimos momentos da sua vida. Eu não capitulo, escreveu certa vez, diante do mal que a levaria para o túmulo.


No momento em que surgia um novo modelo feminino – aquele que as mulheres de hoje sustentam, para inaugurar a rebelião contra um mundo dominado por homens que instituíram o casamento como seu único destino, as meninas leitoras espantaram-se com as batalhas dessa jovem frágil que travou suas cruzadas lastimando a condição feminina de seu século. Narcisista, sim, mas sobrecarregada de amor próprio, ela aceitou todos os desafios e trabalhou incansavelmente para ser grande entre os grandes e assim soube insuflar de autoestima o coração de suas leitoras.


A primeira edição do Diário, uma visão resumida e censurada dos manuscritos


Após a morte da escritora, sua mãe cumpriu a vontade dela. Do ponto de vista editorial, havia uma impossibilidade material de imprimir o Diário na íntegra. Para a tarefa, sua mãe contou com o apoio do prestigiado poeta, romancista e dramaturgo André Theuriet. O resultado dessa parceria foi uma edição que, além de ser um resumo, acabou sendo uma mutilação.





Publicado na França, em 1887, pela editora Fesquelle para a coleção Bibliothèque Charpentier. Os dois volumes, porém, representavam apenas cerca de 20% dos manuscritos deixados pela escritora. Levando-se em consideração que ela escrevia diariamente, ficaram repetidas vezes lacunas que envolviam semanas e meses. Personagens fundamentais para a compreensão tanto da personalidade da autora como dos seus comportamentos, desapareceram totalmente.



Mesmo assim, foi um best-seller inusitado. Todas as camadas daquele cosmético não conseguiam esconder o que havia de essencial no texto que prendeu seus leitores.

 

Outras publicações mundo afora


O Diário logo começou a ser reproduzido em diferentes idiomas do mundo e o eco de sua voz foi ouvido em metrópoles tão distantes como Tóquio ou Buenos Aires; também nos Estados Unidos e no resto da Europa, por mais de meio século, as jovens leram aquelas páginas com ardor para venerar sua vida e deplorar sua tragédia.


No crepúsculo de um século sombrio em que as meninas só aprenderam a falar de seus corações, Marie falou de seu corpo. Pierre-Jean Remy, escritor francês, prólogo da versão integral do Diário publicado pelo Cercle des Amis (Círculo de Amigos) de Marie Bashkirtseff.




Em 1925, cinco anos após a morte de Madame Bashkirtseff e treze desde que ela depositou os manuscritos originais na Biblioteca Nacional da França (1912), uma cláusula  impedia que eles fossem divulgado até 1930. Mas, Pierre Borel, um escritor menor, começou a publicar uma série de volumes com textos inéditos do Diário:


Cahiers Intimes Inédits de Marie Bashkirtseff (cadernos íntimos não publicados de Marie Bashkirtseff);


Les Confessions de Marie Bashkirtseff (As confissões de Marie Bashkirtseff);


Le Premier et le Dernier Voyage de Marie Bashkirtseff (A primeira e a última viagem de Marie Bashkirtseff);


La Véritable Marie Bashkirtseff (A real Marie Bashkirtseff), e provavelmente mais algumas.



Uma nova Marie Bashkirtseff apareceu: a versão cerebral e etérea de Theuriet foi contrastada com essa outra, apaixonada, impetuosa, às vezes imprudente e muitas vezes brutal, para a perplexidade retumbante de seus leitores.


Pierre Borel foi por muito tempo um herói para os estudiosos da vida de Marie Bashkirtseff. No entanto, embora uma profusão de textos censurados dessa primeira edição apareça nesses livros, a verdadeira Marie Bashkirtseff permaneceu desconhecida. 


Estamos agora convencidos de que Borel nunca trabalhou com o manuscrito original, mas, provavelmente, com aquela cópia que Madame Bashkirtseff e sua sobrinha Dina haviam executado no final da década de 1880, enfim, também um texto censurado.



Décadas seguintes


Na década de 1960 ela caiu no esquecimento, justamente porque para aquelas mulheres que se libertavam da ocultação e do preconceito, a sua imagem inocente a submergia na penumbra. Seu status de aristocrata, quando já havia caído em obsolescência, também não a favorecia. Com poucas exceções, leitores e editores viraram as costas para ela.




Mesmo assim, Doris Langley Moore encontrou o manuscrito original do Diário de Marie Bashkirtseff na Biblioteca Nacional da França e de lá extraiu material para seu livro Marie and the Duke of H.: The Dreamy Love Story of Marie Bashkirtseff.





Em 1985, a professora Colette Cosnier, grande biógrafa de grandes mulheres esquecidas, publicou uma magnífica biografia ilustrada: Marie Bashkirtseff. Un portrait sans retouches (Um retrato sem retoques), depois de ler todo o monumental manuscrito original do Diário, depositado na Biblioteca Nacional da França.






Desde 1995, o Cercle des Amis de Marie Bashkirtseff vinha publicando outra versão completa do Diário de Marie Bashkirtseff. Com a transcrição do manuscrito original pela Alma Mater do Cercle, Madame Ginette Apostolescu, a edição foi concluída em 2005, com dezesseis volumes de cerca de trezentas e cinquenta páginas cada.






Em 1999, uma versão supostamente completa do Diário apareceu sob a editora L'Age de l'Homme. Lucile Le Roy foi responsável pela transcrição e extenso trabalho de investigação, que resultou em uma excelente edição abundantemente comentada. Infelizmente, dos cinco volumes projetados, só apareceu aquele que deveria ter sido o terceiro e que cobria apenas três dos doze anos de anotações.






A professora norte-americana Phyllis Howard Kernberger, nos anos 1970 começou a tradução do Diário para o inglês, a partir dos microfilmes do manuscrito original que ela havia solicitado à BNF. Sua filha, a professora Katherine Kernberger, herdou sua paixão e continuou o trabalho ao publicar, em 1997, o primeiro volume do Diário, em inglês. Em 2013, a segunda e última parte, baseada na edição Cercle des Amis.



Quem foi, afinal, Marie Bashkirtseff?


Dotada de muitos talentos inatos, em quantas outras atividades ela estaria interessada se o fantasma de uma vida curta ou da própria morte não tivesse cruzado seu caminho? Quando lemos sobre sua vida e sua obra, o que nos move é o caráter trágico de sua existência, no sentido clássico do termo: a morte do herói.


As pessoas, naquela época, costumavam ter tempo, é a primeira coisa que vem à razão. Sim, ela tinha tempo, rica como ela teve a sorte de nascer. No entanto, ela poderia muito bem ter se dedicado à mesma coisa que a grande maioria das moças de sua classe, ficar na ociosidade, simplesmente esperando um marido.


Ela também poderia ter se destacado em outras atividades, a carreira de cantora, interrompida pela faringite crônica. E também na música, especialmente no piano, ao qual dedicou muitas horas por dia durante longos anos até atingir a maestria. Dominou a harpa, o violão e o bandolim e em seus últimos dias se considerou capaz de compor. 

Além disso tudo,esbanjou sua criatividade na alta costura. Ela mesma desenhava seus vestidos e era uma referência da moda, em Nice e Paris, impondo seu estilo para que as grandes casas de moda acabassem por copiá-lo. Quando a selfie ainda não existia, ela teve a lucidez de ser fotografada centenas de vezes ao longo de sua existência para ilustrar seu Diário. Uma menina de hoje!



A edição do Diário influenciou sua notoriedade como pintora? Talvez um pouco. No entanto, alguns anos antes de sua morte, o público e a crítica já haviam reconhecido seu talento. O Estado francês adquiriu sua tela Encontro para o museu de Luxemburgo dois anos antes do surgimento do Diário.


Será que o seu trabalho febril, a sua carreira meteórica na pintura, deveu-se apenas à percepção de uma morte que se aproximava? Bom, ela mesma confessou que desde pequena se sentiu chamada a se tornar um ser excepcional, algo que em seus primeiros anos identificou com a realeza ou com as luzes do palco. 




A consciência de uma vida curta, a fez descartar um caminho na Literatura ou no jornalismo, atividades para as quais ela sabia que era naturalmente dotada. Até onde teria chegado  essa mulher de nosso tempo se tivesse nascido em nosso tempo?





Links utilizados e sugeridos

Escrever sobre Marie Bashkirtseef exige um grande trabalho de pesquisa e condensação para o espaço limitado deste blog. Este texto teve como base o blog do escritor e jornalista argentino José Horacio Mito 

Ele descobriu Marie Bashkirtseff na juventude, em  Buenos Aires nos anos 1970,  lendo o Diário, uma edição amarelada que encontrou em um dos muitos sebos lendários da Avenida Corrientes. 

Aconselho também a leitura de Os diários de Marie Bashkirtseff e de Florbela Espanca, tese de Jonas Jefferson de Souza Leite, mestre em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba.








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