quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

ALBALUCÍA ÁNGEL, A ESCRITORA COLOMBIANA SILENCIADA NO SEU PRÓPRIO PAÍS

 




Uma mulher sem laços



Albalucía Ángel Marulanda, também conhecida como Albalu, escritora e poetisa colombiana, nasceu em 7 de setembro de 1939 na cidade de Pereira, estado de Risaralda. Ela estudou o ensino médio no Colegio de las Madres Franciscanas em Pereira, e sua carreira profissional em Literatura e História da Arte na Universidad de los Andes, em Bogotá.


Em 1955 mudou-se para Bogotá, procurando um ambiente menos provinciano e para poder prosseguir seus estudos universitários. Estudou Arte e Literatura na Universidad de los Andes, em Bogotá, onde conheceu a crítica de arte Marta Traba e o escritor e criador do movimento nadaista, Gonzalo Arango.

Albalucía sempre foi uma escritora livre, uma mulher que foi silenciada por dizer a verdade em um país com ouvidos fechados. A partir de 1964, ela viajou para a Europa para continuar seus estudos de arte na Sorbonne em Paris, enquanto estudava simultaneamente cinema na Universidade de Roma.

 

Viveu uma peregrinação acadêmica, cultural e musical por Roma, Barcelona e Paris, na época da revolução estudantil de maio de 1968. Nos anos 1970 mudou-se para Barcelona onde conheceu e frequentou a casa dos escritores do boom da Literatura latino-americana como Mario Vargas LlosaGabriel García MárquezCarlos FuentesJulio Cortázar e José Donoso, entre outros.


 



Seu primeiro romance na Europa foi Girassóis de Inverno (1970), uma história sobre os diferentes aspectos do amor; o de um casal, o das cartas e o das alucinações amorosas. Publicou também Duas vezes Alicia, romance de ficção científica e encanto baseado no imaginário de Alice no país das maravilhas e a dupla face de Alicia como o seu alter ego.

 

Em 1972, foi vítima de uma tentativa de assalto em Madrid que lhe causou graves ferimentos na cabeça e na coluna. Regressou à Colômbia desenganada. Após alguns meses de convalescença e recuperação, voltou à Europa e fez uma profunda investigação histórica sobre a violência dos anos 1940, na Colômbia. Em 1975, em Barcelona, escreveu seu mais importante livro.

 

Estaba la pajara pinta sentada en el verde limón

 

O romance Estaba la pajara pinta sentada en el verde limón não tem apenas um narrador. A narração é um encontro que dá voz a pessoas muito diferentes umas das outras na sociedade colombiana. O romance divide-se em três momentos específicos da história colombiana:

 

O assassinato de Jorge Eliécer Gaitán em 1948,

O massacre dos estudantes da Universidade Nacional em 1954,

O assassinato de Camilo Torres em 1966.

 

Um dos propósitos da Albalucía é que a Literatura esteja muito próxima da realidade. Por isso, não só neste romance ela se envolveu com ferramentas como recortes de imprensa: em seu livro de contos, Oh Gloria Inmarcesible, há também uma extensa colagem de manchetes que reafirmam o inusitado da realidade colombiana.


 


A coisa mais terrível era que você não podia ler a imprensa. Eles nos baniram. O que está acontecendo agora aconteceu. Eles mostraram algumas fotos horríveis. Era uma imprensa extraordinariamente tabloide. Você não viu nem ouviu nada além de mortes, diz Albalucía.

 

Com este livro ela ganhou o Prêmio Experiências em Cali. O vencedor teria a obra publicada; porém a editora se recusou a imprimir o livro porque nele eram mencionados os nomes de políticos da época ligados ao período da violência na Colômbia. Além disso, as mulheres tinham pouca credibilidade no campo literário, dominado principalmente por escritores masculinos.


Instituto Colombiano de Cultura (Colcultura) imprimiu o livro como parte do acervo da Biblioteca Colombiana de Cultura, com uma tiragem de cem mil exemplares. A obra foi publicada em meio à luta para representar o sentido estético, histórico e político de um passado e presente violentos.

Juan Gustavo Cobo Borda, escritor contemporâneo da Albalucía, que dirigiu o programa de televisão Páginas de Colcultura e a revista Gaceta, lembra que o livro circulou muito bem, aquela coleção foi vendida em todo o país e os jornais deram-lhes uma notícia gratuita.

 

Alguns fatores que influenciaram o romance Estaba la pajara pinta sentada en el verde limón a ser mal lido têm a ver com o fato de Albalucía ter sido tachada de “louca” ou de mulher “atrevida” por ser uma revolucionária em uma tradição de homens e poucas mulheres.




 

Também foi influente que Albalucía escrevesse em um registro experimental, no estilo de Virginia Woolf, que muito pouco havia sido praticado na Colômbia e com o qual os leitores estavam pouco familiarizados.

 

Uma vez esgotadas as edições do Colcultura, Albalucía ficou à espera de novas propostas editoriais para que o livro fosse impresso novamente na Colômbia, o que não aconteceu.

 


Estaba la pajara pinta sentada en el verde limón é composto por um capítulo zero e quatro partes numeradas. A primeira parte tem cinco capítulos; a segunda, oito; a terceira, nove; a quarta, dois.

 

Em vinte e cinco capítulos se constroem sete pequenas histórias articuladas em duas grandes narrativas: o relato pessoal de Ana (infância na província e anos em Bogotá) e a história da violência na Colômbia (o Bogotazo, violência política durante os governos conservadores, a ditadura militar de Muñoz Sastoque, da Frente Nacional).

 

O estilo literário de Albalucía

 

Pesquisadores e acadêmicos do romance colombiano e latino-americano foram inspirados por seus temas sociais, a expressividade da linguagem, a técnica autobiográfica e as influências literárias femininas que vêm de Virginia Woolf e Simone de Beauvoir.

 

Albalucía Ángel não se dedicou apenas ao romance, aventurou-se também com textos para teatro, ensaios e poesia. Muitos de seus trabalhos têm uma perspectiva feminista e tratam de questões como os direitos das mulheres. Ela também escreveu vários artigos para jornais e revistas, como Diario del CaribeLa Nueva Prensa e El EspectadorO seu estilo independente se divide em três períodos:

 

     1970 a 1972, entre realidade e ficção;

     1973 a 1979, mais investigativa sobre a realidade e a história colombiana;

     1980 a 1984, com ênfase no feminismo e abordagem da corrente pós-moderna.

 

Em 1979, Ángel publicou uma coletânea de contos intitulada: Oh glória imperecível! As matérias ali publicadas compõem uma coletânea de histórias de humor negro sobre a política do país, seus protagonistas e o narcotráfico. O livro foi vetado por ser classificado como “pornográfico”.

 

Feminismo

 

Por volta dos anos 1980, ela abordou o feminismo em duas outras narrativas de extraordinária qualidade: Misiá señora, publicada em 1982 e Las Andariegas, publicada em 1984, poema épico que explora a percepção sensorial de personagens femininas que transitam entre espaços e tempos diferentes.

 

Misiá Señora recolhe a infância de Albalucía com as mulheres que a acompanharam: sua mãe, sua avó e as vozes desiguais de outras mulheres destinadas ao confinamento pelo mundo patriarcal. O livro representa uma viagem implacável pela história e geografia da humanidade. Um grito contra a censura e a injustiça contra as mulheres em todos os tempos.

 

Este livro inspirou pesquisadores a propor o conceito de cronotopo errante, vagando sem direção ou destino, mas para ilustrar a importância das mulheres e da história do ponto de vista feminino. Ela se destaca como uma autora com forte consciência política em relação à Literatura de gênero, subordinação e repressão.


 


A falta de reconhecimento dos colegas literários na América Latina se espalhou para todo um universo editorial. A partir de sua condição feminina e das verdades históricas que seu romance cantava, ela foi marginalizada pelas grandes editoras que todos os anos reimprimiam os romances desses consagrados escritores das nações latino-americanas, mas não os dela.

 

Homenageada por universidades europeias como uma das principais escritoras do boom latino-americano, pouco se sabe sobre ela em seu próprio país.

 

Alejandra Jaramillo Morales, uma admiradora que se tornou sua amiga

 

"O que aconteceu com o trabalho de Albalucía é realmente um feminicídio", diz Alejandra Jaramillo, escritora de Bogotá e professora da Universidade Nacional da Colômbia.

 


Alejandra estudou Literatura na Universidad de los Andes, onde a professora Paulina de San Ginés mostrou a ela e a outros estudantes de Literatura os romances de Albalucía no início dos anos 1990.

 

“Como é possível que uma cultura não entenda a importância disso? ” Foi a pergunta que motivou Alejandra a fazer sua tese de graduação sobre o trabalho de Albalucía.

 

De que falamos quando falamos de Albalucía Ángel?

 

Este foi o título da palestra de Alejandra, em 5 de outubro de 2019 no lançamento da narrativa completa de Albalucía Ángel publicada pela Secretaria de Cultura de Pereira durante a Feira do Livro do Eixo do Café. Na feira foram apresentadas seis obras narrativas reeditadas.





Em 1997, quando ela cursava mestrado em Nova Orleans sua professora Paulina ligou para informar que Albalucía estava nos Estados Unidos e recomendou que a procurasse. Alejandra realizou o sonho de conhecer sua escritora favorita. Em Nova Orleans, com seus colegas de mestrado, organizou um evento sobre personagens latino-americanas.

 

Após vinte e dois anos de amizade, Albalucía e Alejandra estão unidas pela mesma luta: a de resistir como escritoras livres. Ouvir Albalucía falar de Alejandra e Alejandra falar de Albalucía é testemunhar uma irmandade que permitiu a elas e a outras escritoras saírem à tona devido à generosidade do gênero.




 

Reconhecimento tardio

 

Em 2006, na Colômbia, ela recebeu uma homenagem do Ministério da Cultura na qual se incluíram vários escritores colombianos e, em 2015, quando seu livro La pajara pinta comemorou quarenta anos de publicação, a editora Ediciones B fez uma publicação comercial. Com isso, sua obra ficou mais conhecida no país. Em outubro de 2019, a Secretaria de Cultura de Pereira reeditou a obra completa de Albalucía Ángel, apresentada como coleção durante a Feira do Livro do Eixo do Café.






Atualmente, a escritora mora na Califórnia, visita a Colômbia ocasionalmente e continua sendo uma voz crítica sobre os acontecimentos políticos e sociais do país.




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La Máquina del Tiempo - Capitulo 83 (AlbaLucia Angel) Part 1
















Dos veces Alicia

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

HIGUCHI ICHIYÔ, UMA VASTA PRODUÇÃO LITERÁRIA PARA UMA VIDA TÃO CURTA

 


小さな葦の葉の生活


Higuchi Ichiyô, a principal escritora japonesa da Era Meiji

  

Higuchi Ichiyô pseudônimo de Higuchi Natsu, também chamada Higuchi Natsuko, poeta e romancista foi a escritora japonesa mais importante e a primeira romancista profissional japonesa desde o início da Era Meiji. Seus trabalhos retratavam os bairros de lazer licenciados de Tóquio. 

Em sua curta vida de vinte e quatro anos e, em particular, durante um ano e dois meses antes de sua morte, ela deixou obras que foram altamente relevantes na história da Literatura japonesa moderna. Foram vinte e dois livros, oito publicados nesse período de quatorze meses.


Escrever sobre Literatura japonesa não é uma tarefa fácil dada à escassez de livros japoneses publicados no Brasil. Boa parte do meu trabalho está embasada na dissertação Considerações sobre a obra Nigorie (Enseada de águas turvas) e sua autora Higuchi Ichiyô (1872 – 1896) da professora Rika Hagino, apresentada ao Programa de Pós-graduação em língua, Literatura e cultura japonesa do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (link no final da página).




O livro Ôtsugomori (1894) abriu as portas para a fase realista da escritora. Nessa obra, as personagens que antes dela eram descritas com base em elementos emocionais, foram retratadas por meio da descrição direta da vida da mulher que sofre com a pobreza, reflexo da própria vivência da autora. Ichiyô se afasta do mundo imaginário das obras anteriores e utiliza elementos reais.


Ôtsugomori é uma história com o início e o fim bem estruturados, sem o ar clássico, das ideias desbotadas. Seus textos ficam mais simples, concisos e com ideias definidas. Ao mesmo tempo que buscava a realidade da vida, ela se amparou nas suas próprias experiências.





Do orgulho samurai à extrema pobreza


Nascida na Era Meiji com fortes resquícios do feudalismo, numa época em que a posição socioeconômica de uma mulher ainda não tinha a liberdade de hoje, a escritora sujeitou-se aos conceitos de virtude social da época, sem revoltar-se contra a sua realidade e sem clamar pela liberdade feminina.


De uma família em decadência face ao novo regime político e social da Era Meiji, teve sua situação agravada devido às dívidas deixadas pelo pai. Porém, ela não perdeu o orgulho característico das mulheres daquela época de pertencer à classe dos samurais. Entrou na alta sociedade devido à sua prática poética, costume tradicional na educação feminina.




Mas nada disso impediu que ela vivesse na extrema pobreza. Vivenciou a realidade da classe mais baixa da sociedade compartilhando os sentimentos das mulheres sem privilégios. Ichiyô foi a primeira escritora da época a expressar de forma tão direta a tristeza das mulheres abandonadas pela sociedade injusta. Seu romantismo repleto de emoção ao descrever personagens oprimidos, especialmente a complexa psicologia feminina, fez dela a principal escritora da Era Meiji, devido à pureza que conferia a suas obras.


Início da fase realista


Ao mudar-se para Hongô Maruyiama Fukuyamachô, zona de prostituição clandestina de Tóquio, ela teve a oportunidade de um contato direto com as mulheres do meretrício, seja grafando os letreiros dos prostíbulos, seja escrevendo cartas a pedido dessas mulheres analfabetas.



Ela usou o estilo Gazoku-setchu de Saikaku Ihara (uma mistura de linguagem elegante e comum) para descrever o comportamento das mulheres e a tristeza dele resultante, durante o período Meiji. Ao mesmo tempo em que demonstra compaixão por elas, faz uma descrição real e contundente, valendo-se do uso dos diálogos para descrever com habilidade os ambientes e o caráter de suas personagens. 

Em agosto de 1886, aos 14 anos, Ichiyô ingressou no curso de waka (poemas clássicos) na escola Haginoya e lá ficou durante seis anos. Sua vivência no curso exerceu grande influência na sua vida pessoal e principalmente em sua vida literária. Estudou waka e os clássicos com Utako Nakajima e romances com Nakara Tôsui.


Naquela época, Haginoya era uma escola frequentada pelas esposas e filhas das classes abastadas do antigo regime, como nobres da corte, conselheiro sênior do xogunato Tokugawa, antigos senhores de domínios, estadistas da Era Meiji e militares. Praticamente todas as suas obras são escritas em um estilo entre o refinado da aristocracia Heian e o neoclássico característico dos meados da Era Edo (794-1185).


Natarai Tôsui impulsiona a carreira de Ichiyô


Em 1891, ela foi apresentada a um romancista menor, Nakarai Tōsui, que se tornou uma importante inspiração para o diário literário que ela manteve de 1891 a 1896, publicado como Wakabakage (Na sombra das folhas da primavera).


Natarai Tôsui ensinou a Ichiyô as primeiras técnicas do romance. Na época, sua escrita estava atada à sua formação antiga, tanto no conteúdo quanto na técnica. Ichiyō ignorou a principal sugestão de Tōsui, ou seja, que ela usasse linguagem coloquial em sua escrita, e passou a polir seu próprio estilo de prosa clássico distinto. Mas a influência dele nas obras de Ichiyô é bastante notada.


Ela escreveu com sensibilidade principalmente sobre as mulheres do antigo centro de Tóquio, numa época em que a sociedade tradicional estava dando lugar à industrialização.




Seus trabalhos incluem Ōtsugomori (O Último Dia do Ano – 1894) e sua obra-prima, Takekurabe (Crescendo – 1895), uma delicada história de crianças crescendo à margem do distrito do prazer. Natarai Tôsui criou o periódico Musashino, com a intenção de tornar Ichiyô conhecida. Ela assinou pela primeira vez com o seu pseudônimo Higuchi Ichiyô na ocasião da publicação de Yamazakura. Esse nome nasceu de sua percepção de estar vagando solitária em meio às tempestades da vida, como uma folha de junco fluindo em um grande rio. Ichiyô significa literalmente uma folha de planta


Posteriormente, publicou as obras Tamadasuki (Adorno para prender a manga do quimono), Samidare (A chuva no começo do verão) e Wakarejimo (A geada da octogésima primeira noite a contar do início da primavera). Por intermédio de Tôsui, fez sua primeira publicação em quinze partes sucessivas no jornal Kaishin Shinbun.


Seu mestre e único amor


Tôsui seria seu primeiro e único amor. No entanto, um escândalo sobre seu relacionamento com ele se espalhou (embora ambos fossem solteiros, os costumes da época não aprovavam tais associações entre um homem e uma mulher sem a intenção de se casar). Por causa disso ela cortou relações com Tôsui.


Findo o relacionamento, ela publicou Umoregi (Madeira enterrada), um romance idealista no estilo de Rohan Koda, completamente diferente de seus trabalhos anteriores. O afastamento de Tôsui foi um acontecimento de profunda tristeza e isso pode ser observado em seu Diárionão consigo derramar nem as lágrimas, tamanha é a minha tristeza.


Em 1896, quando Takekurabe foi publicado na íntegra em Bungei Kurabu, ganhou grande aclamação de Ogai Mori, Rohan Koda e outros; Ogai Mori elogiou muito Ichiyô em Mezamashigusa, e muitos membros do Bungakukai começaram a visitá-la.


Em maio do mesmo ano, ela publicou Warekara (De mim mesmo), e Tsuzoku Shokanbun (Epístola Popular) em Nichiyo Hyakka Zensho (A enciclopédia diária). Ichiyô tinha tuberculose avançada e, quando foi diagnosticada em agosto, foi considerada sem esperança.


Praticamente todas as obras de Higuchi Ichiyô estão traduzidas para o inglês. Infelizmente, em português somente uma: Wakaremichi (A despedida), editada pela USP. Consulte: Contos da Era Meiji, Geny Wakisaka, organizado pelo Centro de Estudos Japoneses da USP. 





Morte prematura


Em sua curta existência Ichiyô passou de filha de família samurai a extrema pobreza, convivendo com a alta camada da sociedade e também com a camada excluída socialmente. Apreciou a Literatura como uma arte e que mais tarde passou a ser o seu sustento. Após a sua morte, sua irmã Kuni teve um papel fundamental para a existência da jovem escritora até os dias atuais. Contrariando o pedido da irmã de que seus Diários fossem queimado logo após a sua morte, Kuni preservou todas as obras e objetos pessoais de Ichiyô.


Ela morreu de tuberculose pulmonar aos vinte e quatro anos. Começou o Diários aos quinze anos, em janeiro de 1887 e terminou em julho de 1896. O livro tem um total de quarenta itens. É possível percorrer com ele o caminho que Ichiyô trilhou durante aproximadamente seis anos, período da passagem de escritora desconhecida até se tornar famosa.


A vida de Ichiyô como romancista durou pouco mais de quatorze meses. Em 1897, ano seguinte à sua morte, foram publicados Ichiyo Zenshu (A coleção completa das obras de Ichiyô), e Kotei Ichiyo Zenshu (A coleção completa revisada das obras de Ichiyô). 


A vida de uma pequena folha de junco



Higuchi Ichiyô nasceu no dia 25 de março de 1872 (02 de maio pelo calendário atual), cinco anos após o início da Era Meiji (1868-1912) e da mudança da capital do governo militar Edo para Tóquio. Nasceu na residência oficial dos funcionários da prefeitura de Tóquio.

Seu pai Higuchi Noriyoshi (1830-1889) e sua mãe Taki (1834-1898) vinham de uma decadente família de samurais. Embora ela fosse uma aluna interessada, teve de largar a escola aos onze anos, por determinação da mãe, que acreditava que a filha deveria começar a se preparar para futuramente contrair matrimônio. Aos quatorze anos ingressou no curso de waka (poema tradicional) em Haginoya, tendo contato com a Literatura clássica, sua base literária.


Seu pai faleceu quando ela tinha dezoito anos, vítima de tuberculose pulmonar. Como não era possível depender de seus dois irmãos mais velhos, ela trabalhou como arrimo de família, tocando uma minúscula venda de utensílios domésticos e doces. Enquanto isso, publicou inicialmente poemas em estilo tradicional japonês e depois, romances.


Apesar das diferenças de nacionalidade e cultura, vejo alguma identificação entre Higuchi Ichiyô e Carolina Maria de Jesus. Ambas viveram em extrema pobreza, saíram cedo da escola e tiveram que lutar muito pela sobrevivência. Porém, nada disso abalou a necessidade vital de escrever como uma compensação interior pela vida que levaram. 




Ambas escreveram seus diários que chegaram aos tempos atuais como documentos artísticos, literários e, sobretudo como testemunhos de duas mulheres que venceram as adversidades tendo como única arma a capacidade de colocar no papel sentimentos e emoções e de levarem em frente seus propósitos, mesmo em meio a tantas adversidades. 






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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

NAVALHA NA CARNE, CORTE NA ALMA. NAWAL EL SAADAWI A VOZ DAS MULHERES MUTILADAS

 



Nawal El Saadawi a voz das mulheres mutiladas, inclusive ela

 

A Face Oculta de Eva: Mulheres no Mundo Árabe é um poderoso relato da brutalidade contra as mulheres no mundo muçulmano. Permanece tão chocante hoje quanto quando foi publicado pela primeira vez, há mais de um quarto de século. Foi a horrível mutilação genital feminina que Nawal El Saadawi sofreu com apenas seis anos e que primeiro despertou nela o senso de violência e injustiça presente na sociedade egípcia. 


A mutilação genital feminina (MGF) refere-se aos procedimentos que envolvem a remoção parcial ou total dos órgãos genitais externos femininos ou qualquer outra lesão nos órgãos genitais das mulheres sem justificação médica. Tradicionalmente a circuncisão é feita com uma lâmina e sem qualquer anestesia.


Feminista, escritora, médica e ativista política, Nawal El Saadawi nasceu em 1931 na aldeia de Kafr Tahla, no Delta do Nilo, no Egito, de uma família de altos servidores do Estado. Seu pai, um funcionário do Ministério da Educação do Egito, fora exilado para lá junto com a mulher e os nove filhos por ter se rebelado contra a ocupação britânica.





Apesar de seu pai ser relativamente progressista, ele autorizou o corte do clitóris da filha de apenas seis anos e tentou casá-la aos 10 anos, não fosse a oposição da mãe. A mesma mãe que permitiu a mutilação da filha.




Suas experiências trabalhando como médica em aldeias ao redor do Egito, testemunhando prostituição, crimes de honra e abuso sexual, a inspiraram a escrever para dar voz a esse sofrimento. 

 

Até sua morte, em 2021, ela explorava as causas da situação por meio de uma discussão sobre o papel histórico das mulheres árabes na religião e na Literatura. Para ela, o véu, a poligamia e a desigualdade legal eram incompatíveis com o Islã justo e pacífico que ela imaginava.


Uma voz que nunca se deixou calar

 

Em 1972, publicou Mulheres e Sexo, uma corajosa denúncia da mutilação genital feminina e dos maus-tratos conjugais sofridos por mulheres egípcias. Por causa disso, foi imediatamente demitida do cargo de diretora-geral da saúde, de editora da revista Saúde e de secretária-geral adjunta da Associação Médica do Egito.


Isso, entretanto, não fez calar a sua voz. Seus livros tiveram traduções em vários idiomas, e ela recebeu diversos prêmios e doutorados honorários em reconhecimento ao seu ativismo e a sua obra. Foi convidada como professora visitante em várias instituições acadêmicas nos Estados Unidos e na Europa.

 

Mulher no ponto zero

 

Seu romance Mulher no ponto zero, de 1973, foi inspirado na história de uma prisioneira condenada à morte, na infame prisão de Al Qanatir. Nawal a conheceu durante um projeto de pesquisa.

 

Firdaus, a protagonista do romance, está na prisão por assassinar seu cafetão. Ela também se recusou a assinar um documento dirigido ao presidente do Egito pedindo por sua vida. Rejeita tudo que possa livrá-la da pena porque ela não tem medo da morte.

 

O romance começa na voz de uma pesquisadora visitante (El Saadawi) que fica instantaneamente obcecada pela prisioneira. “Comparada a ela, eu não passava de um pequeno inseto rastejando sobre a terra entre milhões de outros insetos”.

 

Firdaus vive constantemente em busca de conhecimento e compaixão, mas por ser pobre e mulher, não recebe quase nada de ambos. Seu desejo de continuar estudando é ignorado por sua família. Ao invés disso, eles arranjam um casamento com um homem sexagenário, mesquinho, porco e violento. Ela ainda não completara dezenove anos.

 

O casamento e outros relacionamentos violentos, ficam para trás quando ela conhece Shafira, uma mulher que a leva para vida de prostituição.  Aos vinte e cinco anos ela também se livra de Shafira e conduz sua vida por conta própria. Vai conseguir tudo que nunca teve. A raiva de Firdaus contra a sociedade, os homens e o tratamento dado às mulheres cresce e piora a cada dia, até ela ser presa e condenada à morte.


Mulher no ponto zero inspirou mulheres em todo o mundo e oferece aos leitores uma visão honesta do tratamento brutal das mulheres, que até hoje ainda acontece.


Os livros árabes quase não são lançados em português por causa da dificuldade de encontrar tradutores. Uma experiência bastante interessante é ouvir o romance em áudio book Firdaus, a mulher dos olhos de fogo. No final da página tem o um link no Youtube. Aconselho ouvi-lo.




 Consequências políticas

 

No final dos anos 1970 ela se tornou chefe do Programa das Mulheres das Nações Unidas na África e ganhou renome internacional como feminista após a publicação de A face oculta de Eva, em 1977.



O seu envolvimento na causa feminista, a levou a publicar dezenas de livros de ficção e de não-ficção e a participar na fundação da revista Confronto. Isso enfureceu as autoridades religiosas do país e acabou por ditar a sua prisão em 1980, às ordens do presidente Anwar Al Sadat.


Na prisão, proibiram-na de escrever, mas ela conseguiu redigir clandestinamente as suas memórias do cárcere em folhas de papel higiénico. Foi libertada em finais de 1981, um mês depois do assassinato de Anwar Al Sadat. A revista Time nomeou-a uma das 100 mulheres do ano.

 

Em 1982, fundou a Associação de Solidariedade das Mulheres Árabes e a sua intensa atividade em prol da libertação feminina tornou-a alvo de ameaças de morte por parte dos islamistas radicais.

 

Em 1992, foi colocada sob “proteção” do governo contra sua vontade, o que a obrigou a fugir do país em 1993 e a fixar-se nos Estados Unidos, onde lecionou nas universidades Duke, Washington, Harvard, Yale, Georgetown, Columbia, Berkeley e Florida State. Foi também professora na Sorbonne, em Paris.

 

Retorno ao Egito


Em 1996, regressou ao Cairo, onde deu aulas na universidade e continuou a luta contra o conservadorismo egípcio, sendo acusada de insultar o islã e ameaçada de prisão em 2001, 2007 e 2008. Ela se via principalmente como romancista, mas permaneceu politicamente ativa. Usou sua candidatura nas eleições presidenciais de 2005 para expor a superficialidade da democracia do Egito.  Em 2011, se juntou às manifestações contra o governo do presidente Hosni Mubarak na Praça Tahrir, no Cairo.




Uma de suas peças teatrais, Deus renuncia nas reuniões de cúpula, de 2006, levou-a a julgamento por apostasia (ação de renegar algo, normalmente relacionado com a renúncia de uma religião ou da fé religiosa) e heresia pelas altas autoridades religiosas da Universidade de Al Azhar (2008). A obra continua proibida no Egito.

 

O feminismo de Nawal El Saadawi

 

Flávia Abud Luz, Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) escreveu um importante ensaio sobre o feminismo de Nawal El Saadawi. Fiz o resumo abaixo. No final da página deixo o link para o texto completo.


Observações cuidadosamente realizadas ao longo de sua infância e adolescência lhe permitiram questionar a noção de hierarquia de gênero por meio das distinções sociais feitas entre meninas e meninos, e posteriormente mulheres e homens.


O fato de El Saadawi fazer parte de uma família de classe média e bem instruída não a isentou de ter na sua juventude a projeção dos ideais anteriormente mencionados com relação ao papel que a mulher egípcia ocuparia na sociedade: o papel da esposa.




O incômodo que seus textos provocavam, estas “palavras afiadas”, estava justamente neste trabalho de lançar um foco naquela que para a autora era uma ferida importante da sociedade egípcia: violência (física, psicológica e sexual) infligida às mulheres por conta de uma moral rígida que se apropria da religião como forma de legitimação.

 

El Saadawi (2002) argumenta que a MGF (Mutilação Genital Feminina) não é um costume religioso, mas sim uma prática anterior à inserção do Islã (no século VII) que se acomodou às estruturas patriarcal e capitalista das sociedades árabes ao longo do tempo. Neste sentido, a prática converteu-se em um aspecto ligado à honra familiar e à castidade da mulher, pois atendia ao “dilema patriarcal” de garantir a hereditariedade da família e a sucessão da propriedade (ou bens), evitando que fossem entregues a filhos gerados em uma relação com um homem de outra família ou linhagem. 




El Saadawi questiona com veemência a desigualdade de gênero presente no direito de herança (a mulher herda a metade do que o homem), bem como a ideia presente em algumas escolas jurídicas de que a mulher precisava do consentimento de seu pai para se casar, mesmo se já tivesse alcançado a maioridade.

 

A censura promovida à obra de El Saadawi nos anos 1980 foi, sobretudo, fruto de uma pressão religiosa. A autora a descreve do seguinte modo: “Minha vida estava capturada no fogo cruzado das forças de segurança do Estado e dos movimentos terroristas que ocultavam seus objetivos por trás de uma fachada religiosa.


 


A atualidade da obra de El Saadawi pode ser observada na relevância das pautas abordadas por ela, tais como a mutilação genital feminina (MGF), a violência doméstica (em suas formas física, psicológica e sexual), e as leis de família (que orientam tópicos como os direitos de mulheres e homens no casamento, no divórcio e na custódia de filhos). Essas reivindicações inspiraram a reflexão de estudiosas no Egito e no Oriente Médio acerca do status da mulher. 

 

Entre as diversas vozes femininas que El Saadawi inspirou destaco aqui a escritora egípcia Mona Eltahawy, que em sua obra destaca a importância na atuação feminina em lutar por seus direitos familiares, sociais e econômicos em um contexto político marcado por governos autoritários como é o caso do Egito.

  

Formação acadêmica

 

El Saadawi completou os estudos na escola secundária para meninas Nabeweya Moussa e tornou-se pensionista na Escola Secundária Helwan para Meninas, onde se especializou em Ciências (1945). Estudou como bolsista na renomada Escola de Medicina Kasr Alainy da Universidade do Cairo (1949-1954). Formou-se em psiquiatria, em 1955.


Formação profissional


Nawal trabalhou como médica residente no Hospital Universitário de Kasr Alainy, em centros de saúde. Em 1958 passou a integrar o Departamento de Doenças Torácicas no Ministério da Saúde do Cairo e Gizé.


Concluiu o mestrado em saúde pública na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Em 1966 foi nomeada diretora-geral de saúde do Egito. Serviu como secretária-geral adjunta da Associação Médica do Egito e foi editora da revista Saúde (1968-1974).


De 1973 a 1976, trabalhou na Faculdade de Medicina da Universidade Ain Shams, no Cairo, investigando as neuroses femininas. De 1979 a 1980, foi consultora do programa ONU Mulheres em África e no Médio Oriente.

 

Premiações

Em 2004, ela recebeu o Prémio Norte-Sul, do Conselho da Europa e o Prémio Seán MacBride, do Gabinete Internacional para a Paz, em 2012. Ficou conhecida como “Simone de Beauvoir do mundo árabe” pelas suas posições contra a mutilação genital feminina (e masculina) e o véu islâmico.

 

O descanso da guerreira

 

Nawal El Saadawi morreu num hospital do Cairo no dia 21 de março de 2021. Três vezes divorciada, foi mãe de duas filhas que, ao contrário dela, mas graças a ela, nunca sentiram o frio de uma navalha a cortar-lhes a carne e, sobretudo, a dilacerar-lhes o espírito, até ao fim dos dias.



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