segunda-feira, 24 de outubro de 2022

GHADA SAMMAN - REALISMO MÁGICO E TRILOGIA DA GUERRA DO LÍBANO

 



Solidão longe de casa


Ghada Samman, é uma escritora prolífica que produziu mais de 40 obras em uma variedade de gêneros, incluindo jornalismo, poesia, contos e romance. Ela nasceu em 1942, em Damasco, na Síria. Sincera, inovadora e provocadora, Samman é altamente respeitada no mundo árabe, embora às vezes controversa.  Várias de suas obras foram traduzidas do árabe para o inglês, francês, italiano, espanhol, russo, polonês, alemão, japonês e farsi.

 

Sua mãe, também escritora, morreu quando ela era criança e ela cresceu sob os cuidados do pai, professor universitário, reitor da Universidade de Damasco e ministro do gabinete. Ela afirma que foi seu pai quem promoveu dentro dela uma apreciação tanto pelo trabalho duro quanto pelo aprendizado. 


A jovem Samman escolheu fazer um bacharelado em Literatura inglesa, na Universidade de Damasco, em vez de medicina, como seu pai esperava. Ela então obteve um MA da Universidade Americana de Beirute, onde escreveu sua tese sobre o Teatro do Absurdo

 

De lá, ela foi para Londres para fazer um doutorado, mas acabou abandonando o projeto. Seu pai morreu enquanto ela estava em Londres. Durante aquele ano crucial de 1966, Samman também perdeu seu emprego como jornalista de um jornal libanês e foi condenada à revelia a três meses de prisão por ter deixado a Síria sem permissão oficial. Posteriormente, a sentença foi revogada sob indulto geral pelo governo sírio. Na época, no entanto, Samman ficou completamente sozinha, uma posição incomum para uma jovem árabe de sua classe social.





Samman trocou de bom grado a liberdade pessoal que experimentou no Ocidente por um sentimento de pertencimento ao mundo árabe. Ela escolheu residir em Beirute porque, segundo ela, parecia permitir um certo grau de liberdade dentro do mundo árabe e incorporar a batalha entre o iluminismo e a opressão. Durante a guerra no Líbano, Samman residiu em Paris por cerca de 15 anos com o marido e o filho. Hoje, ela mantém duas casas, uma em Beirute e outra em Paris.

 

A Primavera Árabe e as guerras no Líbano e na Síria 

 

Entre 1975 e 1990, o Líbano passou por uma sangrenta guerra civil, envolvendo cristãos do Partido Falangista, muçulmanos da Organização para Libertação da Palestina (OLP) e judeus israelenses. O conflito emanou da deterioração do estado libanês e da aglutinação de milícias que forneciam segurança onde o estado não podia. Essas milícias se formaram em grande parte nas seguintes linhas comunais:

 

Frente Libanesa (LF), liderada pelos Falangistas (ou Falange), representava clãs cristãos maronitas cujos líderes haviam dominado a elite tradicional do tecido sociopolítico do país. Os maronitas fazem parte de uma ordem religiosa católica que reconhece o Papa como liderança máxima da igreja. A instituição teve origem no Líbano, por meio de São Maron, um eremita que viveu até cerca do ano 410 e cujas pregações alcançaram a conversão de muitas pessoas;


Movimento Nacional Libanês (LNM), uma coalizão de esquerdistas seculares e muçulmanos sunitas simpatizantes do nacionalismo árabe. Muçulmanos sunitas são os integrantes do grupo que reconheceram Abu Bakr como sucessor e seguem os preceitos da religião islâmica segundo o Alcorão e a Sharia. Também baseiam suas crenças na Suna, um documento sagrado que narra as experiências vividas pelo Profeta Maomé. A palavra sunita vem de Ahl al-Sunna, ou as pessoas da tradição. A tradição, neste caso, refere-se a práticas baseadas em precedentes ou relatos das ações do Profeta Maomé e daqueles próximos a ele. Para esse grupo, a religião e o Estado deveriam ser uma única força. Seu líder religioso é chamado de Califa. Os sunitas se consideram o ramo ortodoxo e tradicionalista do islã;

 

Amal (Esperança) também um acrônimo para o movimento Afwāj al-Muqāwamah al-Lubnāniyyah (Destacamentos da Resistência Libanesa), compreendendo populistas xiitas; e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que representava a grande população de refugiados palestinos do Líbano. Xiita é uma seita do Islamismo, que significa partidários de Ali. Os xiitas consideram Ali Bin Abi Talib (primo e genro do profeta Maomé) o sucessor legítimo da autoridade islâmica. A seita xiita considera ilegítimo os sunitas, que assumiram a liderança da comunidade muçulmana, após a morte de Maomé. Seu líder religioso é chamado de Imã.


Guerra na Síria

 

A região do Oriente Médio e Norte da África foi sacudida por uma onda de protestos contra o governo que ficaram conhecidos como Primavera Árabe, iniciados em 17 de dezembro de 2010 e finalizados em meados de 2012. A Guerra na Síria começou em 2011, quando houve uma série de protestos contra o governo do presidente Bashar al-Assad. A guerra afetou em cheio a população civil estimada em mais de 24 milhões de pessoas nos primeiros cinco anos e ainda não terminou. Em alguns casos, como o da Líbia, o dirigente máximo do país foi afastado. O mesmo não ocorreu na Síria.


A guerra foi deflagrada após as denúncias de corrupção reveladas pelo WikiLeaks. Em março de 2011 foram realizados protestos ao sul de Derra em favor da democracia. A população revoltou-se contra a prisão de adolescentes que escreveram palavras revolucionárias nas paredes de uma escola. Como resposta ao protesto, o governo ordenou às forças de segurança que abrissem fogo contra os manifestantes causando várias mortes. Revoltados com a repressão, os manifestantes exigiram a renúncia do presidente Bashar al-Assad.

 

A oposição se armou e entrou em luta contra as forças de segurança do governo. Brigadas formadas por rebeldes começaram a controlar as cidades, o campo e as vilas, apoiados por países ocidentais como Estados Unidos, França e Canadá, entre outros.



Os dois lados do conflito impuseram o bloqueio de alimentos aos civis e a interrupção ou limitação do acesso à água. Por diversas vezes, as forças humanitárias foram impedidas de entrar na zona de conflito. O Estado Islâmico aproveitou a fragilidade do país e se lançou para conquistar cidades importantes em território sírio. Sobreviventes relataram que foram impostos duros castigos como espancamentos, estupros coletivos, execuções públicas e mutilações, para quem não aceitou suas regras. 

 

Características da escrita de Samman

 

O mesmo impulso para a liberdade individual e livre manifestação do pensamento que orienta a vida pessoal de Samman também caracteriza muito de sua escrita. Como jornalista, ela explorou aspectos da vida libanesa que foram amplamente ignorados pelas ideias, atitudes ou atividades consideradas normais ou convencionais, ou seja, a situação dos pobres em áreas negligenciadas do norte e sul do Líbano. Recusando-se a se sujeitar a convenções sociais ou literárias, Samman estabeleceu sua própria editora em 1977. Assim, conseguiu publicar seus próprios escritos sem interferência editorial.

 

Seja em seus escritos românticos relativamente antigos ou na ficção socialmente engajada, como Beirute '75. O trabalho de Samman exibe uma ousadia que desafia qualquer restrição. Embora sua escrita às vezes pareça repetitiva, sua interessante mistura de surrealismo e verossimilhança, juntamente com seu domínio da língua árabe, permite que ela seja simultaneamente poética e política em sua escrita em prosa.

 



Realismo mágico


A capacidade de Samman de se apropriar de tradições literárias não-ocidentais para contextos especificamente árabes é melhor ilustrada pelo emprego de um tipo árabe de realismo mágico em The Square Moon (A lua quadrada), uma coleção de contos sobrenaturais ambientados em contextos realistas. 

 

Nesta coleção, Samman explora as dificuldades e contradições internas vividas por vários imigrantes árabes que vivem na Europa. Em cenários distantes de suas origens, os vários personagens encontram a libertação para as mulheres, mas também o racismo, o deslocamento e a alienação. À medida que lutam com questões de identidade, lealdade, separação e liberdade pessoal, eles também descobrem o domínio tenaz de velhas tradições sobre suas vidas que aparecem em várias formas, algumas positivas, outras negativas.

 

Por meio do simbolismo e da alegoria, Samman aborda questões sociais e políticas sensíveis que podem ser muito perigosas ou menos eficazes se confrontadas diretamente. Uma característica distintiva de seu trabalho é o uso simbólico de animais para dar uma visão da condição humana.

 

Uso Simbólico de Animais

 

Em seu livro Beirute '75, a tartaruga e o macaco performático são as únicas figuras que reagem com medo ao som intimidador dos caças israelenses quando quebram a barreira do som acima de Beirute. As reações instintivas e naturais dos animais fornecem um alívio contra a indiferença do povo libanês, que ignora tanto os avisos portentosos dos aviões ameaçadores quanto do agravamento da situação socioeconômica e política. 

 

A tartaruga, que faz a sombra de Yasmina, uma das personagens principais, é capaz de “sair de sua concha” no romance e encontrar “asas” para voar pela janela do apartamento de Yasmina em busca de liberdade. 




Ao contrário da tartaruga, e mais como os próprios personagens, os peixes coloridos pendurados na barraca de um vendedor no popular distrito de mercado de Beirute só podem escapar de suas prisões transparentes por meio de uma tentativa desesperada de morte. Samman faz esse ponto de forma pungente quando Farah, a contraparte de Yasmina no romance, se compara ao peixe quando percebe que está “preso dentro de uma jarra de vidro” apenas para testemunhar um dos sacos contendo o peixe se abrir, “enviando seu conteúdo e espirrando na calçada”.


Loja de beleza e de horrores


Talvez o uso simbólico mais forte de animais nas obras de Samman seja encontrado em Beirut Nightmares (Pesadelos de Beirute). A loja de animais, que a escritora, narradora e protagonista visita repetidamente tanto em sonhos quanto acordada, passa a funcionar como uma extensa alegoria política, recriando em microcosmo as condições socioeconômicas e de classe no Líbano no início da guerra. 

 

A diferença na aparência física da entrada e dos fundos do pet shop expõe os aspectos superficiais, hipócritas e exploradores do Líbano pré-guerra. A entrada da loja é reservada para os clientes. Apresenta um ambiente bonito, moderno, limpo e urbano. O protagonista vislumbra sorrateiramente os fundos da loja que revelam as condições apertadas, sujas e horríveis em que o dono da loja mantém os animais. 

 

Assim como as massas libanesas pobres e oprimidas, os animais permanecem em condições horríveis para garantir o sucesso comercial do dono dos animais, cuja riqueza depende não apenas dos maus tratos de seus animais, mas também da apresentação de um modelo convincentemente moderno e progressista que pode ser observado na entrada da loja. 


Confusão diante da liberdade

 

Como as massas libanesas desprivilegiadas, os animais do pet shop acostumam-se tanto à prisão a ponto de ficarem perdidos e confusos quando o protagonista abre suas jaulas e lhes oferece liberdade. Então, como muitos dos combatentes libaneses em guerra nas ruas de Beirute, os animais se voltam uns contra os outros muito antes de atacarem o dono da loja. Quando o homem finalmente se lembra de levar comida para seus protegidos, é atacado pelos cães.

 

Como podemos ver nesses exemplos, o uso do simbólico por Samman não está apenas firmemente ancorado em condições sócio-políticas e históricas concretas, mas também participa do mundo da fantasia e do surreal. Esse estilo, como vários críticos notaram é semelhante ao realismo fantástico desenvolvido por importantes escritores latino-americanos como Gabriel Garcia Marquez e Isabel Allende.




Como Samman revela em Register: I'm not an Arab Woman (Registre-se: não sou uma mulher árabe), os fantasmas em The Square Moon (A lua quadrada) são de uma variedade diferente do tipo de cinema gótico ou de Hollywood. Não se limitam aos palácios e aos ricos, nem usam lençóis brancos e caem na gargalhada. Em vez disso, eles assumem formas modeladas nas encontradas nas superstições folclóricas árabes e nas tradições literárias. 

 

O cisne parisiense que enfeitiça o protagonista árabe de The Swan Genie (O Gênio Cisne) possui qualidades especificamente árabes. Apelidado de “Inteligente Hasan” pela protagonista, o cisne lembra os contos de sua avó, “mitos árabes” e a “torre” de “As 1001 Noites”. Por esses meios, Samman destaca as maneiras pelas quais seu uso do realismo mágico é especificamente árabe, não apenas expressando preocupações desse povo como também baseado em precedentes literários arábicos.

 

Embora o uso do sobrenatural por Samman seja mais consistente em The Square Moon, ele também pode ser visto em momentos significativos em cada um dos três livros sobre a guerra civil libanesa. Em um momento misteriosamente profético em Beirute '75, um personagem menor, um adivinho, declara: “Vejo muita dor e vejo sangue – muito sangue”.

 

No aparente cumprimento da previsão da cartomante, os pesadelos em Beirut Nightmares muitas vezes assumem um aspecto sobrenatural, pois os voos de fantasia da protagonista obscurecem a distinção entre seus estados de vigília e sono, permitindo que ela veja, ouça e relate aspectos da vida libanesa que até mesmo a cartomante neste segundo livro tem medo de pronunciar. 

 

De fato, a insistência da protagonista em registrar e resgatar seu manuscrito é em si um movimento schahrazadiano, uma tentativa de prolongar sua vida contando histórias politicamente engajadas, mas fantásticas, diante de uma morte aparentemente iminente.

 

Em Laylat al Milyar (A noite de um bilhão de dólares), os misteriosos encantamentos do mago remontam às bruxas em “Macbeth” de Shakespeare, mas também encontram sua fonte em uma superstição especificamente árabe e no uso de magia ainda praticada em certas partes do mundo árabe. Sua magia, juntamente com seu próprio colapso psicológico no final do romance, permitem a representação simbólica dos sentimentos e desejos internos dos vários personagens.


Críticas negativas

 

Não convencional tanto em sua vida pessoal quanto em obras literárias, Samman não se intimida com as críticas negativas que alguns de seus trabalhos sofreram. Ela retrata temas “tabus” como corrupção política e sexualidade feminina e expõe tudo o que considera hipócrita, explorador ou repressivo nas sociedades árabes. Para esse fim, ela cria personagens fortes, mas falhos, em locais socioculturais especificamente árabes, e depende muito do fluxo de consciência, simbolismo, alegoria e fantasia em grande parte de seu trabalho.





A fuga das garras de sua insuportável realidade

 

A implantação do surreal em todas essas obras é bem-sucedida graças ao uso do motivo do pesadelo por Samman. Beirut '75 termina com uma série de pesadelos de Farah, que parecem funcionar como uma liberação para sua loucura, que é em si uma fuga das garras de sua insuportável realidade. Em um gesto altamente absurdo que combina introspecção com autoafirmação, o romance termina com Farah substituindo o cartaz que anuncia a entrada de Beirute por uma placa que diz: Hospital para doentes mentais.

 

Beirut Nightmares começa onde “Beirut '75” parou. O título e os títulos dos capítulos, juntamente com a comédia grotesca, o absurdo e o macabro, todos recriam o aspecto de pesadelo da guerra civil, sufocantemente vivenciado pela narradora protagonista em seus estados de vigília e sono.

 

As recorrentes excursões fantásticas que são os pesadelos do protagonista funcionam como um dispositivo literário, permitindo variações no cenário da ação. Além disso, eles são um fórum para a crítica política e o questionamento de temas diversos como corrupção, desigualdade, a situação dos pobres, o papel da violência na revolução e, especialmente, a relação entre a caneta e a arma

 

Em um dos muitos episódios repetitivos kafkianos, o absurdo da guerra é retratado na situação do irmão do protagonista, cuja tentativa de fugir dos limites de seu apartamento na linha de frente o leva à prisão por posse de uma arma ilegal.

 

O último livro da trilogia, Laylat al Milya, revela como os personagens de Samman parecem ter “fugido dos pesadelos de sua terra natal para descobrir os pesadelos do exílio”. Movendo a ação dos confins de Beirute para a Europa, Samman expõe as maneiras pelas quais tantos emigrantes libaneses conseguem recriar, no exílio, as mesmas condições sociopolíticas de exploração que perpetuam a guerra no Líbano.

 

Em Beirute'75 a loucura interna vivida por Farah desencadeia as seções “pesadelos” do livro. Em Pesadelos de Beirute, a loucura externa da guerra ao seu redor prende a protagonista em um mundo de pesadelos de sonhos e realidade política. Em Laylat al Milyar, alucinações induzidas por drogas evocam um mundo surrealista, que por sua vez revela o pesadelo das condições reais dos personagens. Vemos isso pelos olhos de Khalil, que é coagido a se tornar um usuário de drogas.




Em estado quase alucinatório, Khalil é levado a um “circo”, onde assiste a vários “shows” surrealistas. Em um deles, as pessoas vivem em uma jaula cujo teto desce imperceptivelmente, mas com segurança, sobre seus ocupantes adormecidos. Quando Khalil tenta avisar um deles sobre o desastre iminente, ele é instruído a cuidar da própria vida. 

 

Em outro “show”, pobres revolucionários invadem uma gaiola dourada apenas para substituir seus ocupantes ricos e assumir suas posições quando se sentam em seus assentos. Nesse mundo circense, a polícia tem a função de silenciar ou expulsar qualquer um que se pronuncie contra o espetáculo. As mulheres participantes estão satisfeitas com os papéis femininos tradicionais e recusam qualquer alternativa às suas tarefas domésticas diárias. 

 

O “homem comum” se recusa a assumir a responsabilidade por sua sorte, certo de que somente “o que está escrito” lhe acontecerá. Outros caem para a morte, pulando para uma piscina que prova ser apenas uma miragem, enquanto os espectadores os observam, sem vontade de adverti-los de seus erros de percepção, porque são “de uma religião diferente” da deles. 

 

É fácil ver como os diferentes episódios no circo representam o triste estado da vida árabe, e especialmente libanesa, como Samman a vê. É um estado de silêncio forçado e rendição voluntária, um estado muito distante das glórias da civilização árabe como sintetizada (e idealizada) no passado árabe andaluz, um tempo e lugar na história para o qual um dos artistas de circo atrofiados permite que Khalil viaje no tempo em segredo.

 

Notas de esperança e triunfo

 

Apesar de suas atmosferas de pesadelo, as obras de Samman inevitavelmente terminam com uma nota esperançosa. Beirut Nightmares termina com a promessa de uma nova vida, simbolizada pelo arco-íris em chamas que a protagonista vê no céu de Beirute depois que ela consegue resgatar a si mesma e a seu manuscrito no seu apartamento. 


Laylat al Milyar termina com uma nota semelhante de triunfo esperançoso simbolizada pela pipa colorida que esvoaça no horizonte de Beirute apesar das balas apontadas para ela e que Khalil espia ao retornar à cidade com seus dois filhos. 






quarta-feira, 5 de outubro de 2022

BUCHI EMECHETA - A BUSCA POR IGUALDADE, AUTOCONFIANÇA E DIGNIDADE COMO MULHER

 


Florence Onyebuchi “Buchi” Emecheta comprometeu-se em corrigir os estereótipos da mulher nigeriana e africana, expondo sua realidade diária e a opressão das normas sociais. Sua obra questiona, entre outros temas, a educação da mulher, a valorização da maternidade como única preocupação possível, a violência degradante do colonialismo e a cultura que deslegitima sua autonomia.



Buchi nasceu em 1944, na cidade Yoruba de Lagos e passou boa parte da infância em Ibuza, terra de seus pais, Alice Ogbanje Emecheta e Jeremy Nwabudike Emecheta que foram buscar trabalho em Lagos, mas faziam questão de cultivar nos dois filhos as raízes Igbo.





Povo Iorubá


Iorubá é o nome de uma das maiores etnias populacionais do continente africano. Na verdade, o termo é aplicado a uma coleção de diversas populações ligadas entre si por uma língua comum de mesmo nome, histórias e cultura. Os grupos étnicos que vivem próximos aos Iorubás são os Fon, Ibo, Igala e Idoma.


A maior parte dos Iorubás vive na região sudoeste da Nigéria. Há também importantes comunidades presentes em Benim, Gana, Togo e Costa do Marfim. Devido ao tráfico de escravos, bastante ativo na área entre os séculos XV e XIX, muitos traços da cultura, língua, música e demais costumes foram disseminados por extensas regiões do continente americano, com destaque para Brasil, Cuba, Trinidad e Tobago e Haiti. Boa parte da população negra no Brasil veio de terras Iorubás. 



A história recente dos Iorubás é marcada pelo surgimento do Império de Oyo no final do século XV, que se ergueu com o auxílio dos portugueses interessados no comércio local. Lagos, aliás, a mais importante e populosa cidade da Nigéria, localizada em terras Iorubás, recebeu seu atual nome do entreposto construído pelos portugueses, uma referência à cidade do sul de Portugal. 





No início do século XIX a invasão dos Fulani empurrou os Iorubás para o sul, onde as cidades de Ibadan e Abeokuta foram fundadas. A maior parte das áreas Iorubá são oficialmente colonizadas pelos britânicos a partir de 1901, sob um sistema de governo indireto que imitava as estruturas tradicionais.



Na Nigéria atual, os Iorubás são uma importante etnia, representando cerca de um sexto da população. São, na sua maioria católicos, mas uma parte segue também o islamismo e o culto tradicional. Cerca de 75% dos homens são agricultores que vivem daquilo que cultivam. As mulheres geralmente são encarregadas de vender parte do excedente nos mercados populares das cidades. Alguns indivíduos possuem grandes fazendas de cacau cujo trabalho é realizado por mão de obra contratada. 



Além das autoridades formais, nas cidades, os Iorubás respeitam o “Oba”, líder temporal, que conquista sua posição de formas diferentes, incluindo herança, casamentos, ou por seleção pessoal do Oba no poder. Cada Oba é considerado um descendente direto do Oba fundador de cada cidade,  geralmente auxiliado por um conselho de chefes.



Os trajes elaborados, feitos tradicionalmente de algodão, são um destaque da cultura Iorubá. O mais básico é a Aso-Oke, de várias cores e padrões diferentes. O agbada é um dos trajes masculinos típicos, cujo nome no Brasil virou sinônimo de uma espécie de uniforme de um determinado bloco de carnaval.


Povos Igbos


Os Igbos (pronuncia-se ibos) são um dos maiores grupos étnicos africanos. A maioria da população Igbo está concentrada na Nigéria, dominando parte do sul e oeste, com cerca de 25 milhões de habitantes. Encontram-se também em Camarões, Guiné Equatorial, Gana, Serra Leoa, Costa do Marfim, Gabão, Libéria e Senegal. Atualmente, milhares deles residem nos Estados Unidos. A tradição oral mais antiga afirma que sua presença, na chamada Terra dos Igbos, remonta há mais de 1500 anos.





As cidades soberanas dos Igbos


Muitas culturas da Nigéria não se transformaram em monarquias centralizadas. Dessas, os Igbos são provavelmente os mais notáveis devido ao tamanho do seu território e à densidade da sua população. As sociedades Igbo eram organizadas em aldeias autossuficientes, ou federações de comunidades de aldeias, com uma sociedade de anciãos e associações de grupos da mesma faixa etária que desempenhavam várias funções governamentais.


Em 1967, apoiados pela multinacional francesa Elf-Aquitaine, declaram a independência da região leste da Nigéria, formando a República de Biafra. Houve fome generalizada na região e guerra civil que levou à derrota do Ibos.


Guerra de Biafra


A Nigéria se tornou independente em 1960 e foi formada pela reunião do povo Ibo com o povo Hausa. Os Ibos eram provenientes da província de Biafra, a leste do país, e formavam a elite da Nigéria. De uma forma geral eram os que tinham os melhores empregos e os melhores salários. Num golpe de Estado, em 1966, um grupo de oficiais do exército da etnia Ibo tomou o poder. No entanto, o novo governo foi derrubado por um contragolpe e os Ibos passaram a ser caçados e massacrados em todo o país.





Os que conseguiram escapar fugiram para a sua província de origem e se declararam independentes. Como a província de Biafra era rica em, o governo não iria aceitar a separação. O resultado foi a guerra civil de 1967 a 1970, que teve como consequência a morte de, aproximadamente, um milhão de pessoas, na maioria Igbos. A província de Biafra se rendeu e foi novamente anexada ao território da Nigéria.


Colonização da Nigéria


Os primeiros colonizadores que chegaram ao país foram os portugueses, por volta de 1470, sendo seguidos por outros países europeus. Ao longo do tempo, o predomínio da ocupação da Nigéria ficou a cargo dos ingleses, que assumiram o controle da maior parte da região, criando uma única colônia.


No contexto de uma sociedade de classes, era prática comum dos colonialistas angariar o apoio da burguesia e da classe média local, tratando-os como iguais. O assimilado era, portanto, o colonizado que rejeitava sua própria cultura em prol de uma cultura superior, em que ele, diferente dos demais compatriotas, pretensamente fazia parte.





Infância e juventude de Buchi Emecheta


Quando menina, uma das suas paixões era ouvir histórias dos mais velhos. As contadoras, seguindo a tradição local, eram sempre mães de alguém. Ela cresceu ouvindo a tia, a quem chamava de Grande Mãe. Buchi costumava sentar “por horas a seus pés, hipnotizada pela sua voz de transe”, deleitando-se com as proezas de seus ancestrais. As visitas a Ibuza, aliadas ao prazer e ao conhecimento, obtidos com as narrativas, trouxeram a Emecheta a certeza de que ela também seria uma contadora de histórias.



Durante a infância, seu irmão, privilegiado por ser menino, foi para a escola, enquanto Buchi ficou em casa. Mais tarde, após diversos e insistentes pedidos, ela foi matriculada em uma escola missionária para meninas, onde aprendeu línguas nativas e o inglês – seu quarto idioma.



Buchi Emecheta viveu uma infância dura. No entanto, a pobreza e a subnutrição em seus anos de juventude, somadas à perda precoce de seu pai  quando ela tinha apenas oito anos, não lhe diminuíram a vontade de viver, um desejo intenso que nunca a abandonaria.





Em 1954, Buchi recebeu uma bolsa de estudos em uma escola de elite, em Lagos. Nessa época, sua mãe faleceu e ela foi passada de um a outro parente distante. Nas férias escolares, enquanto suas colegas voltavam para as confortáveis casas das famílias, ela permanecia no dormitório da escola, encontrando abrigo nos livros e na imaginação. A volta das férias era seu momento de brilhar, deixando maravilhadas as colegas com histórias sobre supostas aventuras.



Casamento infeliz, abusivo e violento



Aos 11 anos, ela conheceu e se tornou noiva do estudante Sylvester Onwordi e, aos dezesseis, já estavam casados. Logo nos primeiros anos, nasceram dois dos cinco filhos. A família mudou-se para Londres e Onwordi foi para a universidade local.



Emecheta viveu um casamento infeliz e, não raro, abusivo e violento. Em seu tempo livre, ela começou a escrever e até já tinha desenvolvido o rascunho de um romance, que acabou sendo queimado pelo marido. Ele estava consumido por um absurdo sentimento de posse e se achava ameaçado pela força de vontade da esposa que sonhava conquistar uma graduação e tornar-se escritora. 







Buchi obteve o divórcio em 1966, aos vinte e dois anos. O ex-marido, porém, não reconheceu a paternidade dos filhos. Sem dinheiro, com cinco filhos para cuidar e em um país estranho a ela, manteve-se com obstinação. Trabalhou na Biblioteca de Londres, enquanto estudava à noite e começou a carreira de escritora conjugando a educação dos cinco filhos e os estudos na Universidade de Londres, onde obteve o diploma de bacharelado em Sociologia (1974), o mestrado (1976) e o doutorado em Educação (1991).



Emecheta trabalhou também no Museu Britânico na década de 1960, e atuou como jovem trabalhadora para a Inner London Education Authority nos anos 1970.  Depois que os seus livros se tornaram bem-sucedidos ela deu aulas em diversos lugares, inclusive na Universidade do Estado da Pensilvânia, na Universidade de Rutgers e na Universidade da Califórnia, na Universidade de Los Angeles e de Illinois, entre outras.  Ela foi premiada com a Ordem do Império Britânico em 2005.



Vontade de escrever e aprimorar seu inglês



A graduação e os pequenos trabalhos eram movidos, desde o início, pela vontade de escrever, aprimorar seu inglês e sua comunicação com o resto do mundo. Após diversas rejeições, recebeu uma oportunidade como colunista no periódico inglês New statesman e ali começou a escrever sobre experiências pessoais. Os textos tornaram-se a base do primeiro livro, In the ditch (Na vala - 1972). Dois anos depois, publicou Second-class citizen (Cidadã de segunda classe). 





Enquanto seus dois primeiros romances têm caráter autobiográfico com alguns elementos ficcionais, as obras subsequentes apresentam um tom de resgate histórico, tendo como cenário a Nigéria Igbo colonial do início do século XX. A África que sua mãe conheceu.


As alegrias da maternidade


Em textos diversos, Emecheta manifestava a necessidade de se comunicar e de atenuar as angústias por meio da escrita. É, portanto, natural imaginar sua reação ao descobrir que uma de suas filhas iria morar com o pai. Devastada, ela escreveu em seguida seu livro de maior repercussão e recepção positiva ao redor do mundo: As alegrias da maternidade (1979), título abertamente irônico, que recebeu sua primeira tradução para o português na edição da TAG enviada aos associados do clube em outubro de 2017.  Foi a primeira obra de Emecheta editada no Brasil.


Tendo como cenário a mesma Nigéria colonial da primeira metade do século XX, a obra narra a trajetória de Nnu Ego, uma jovem Igbo, cujas escolhas serão guiadas pelo que é esperado de uma mulher em seu contexto social, ou seja, ser mãe. Depois de casada, Nnu Ego percebe que não consegue gerar filhos, uma das maiores decepções e desgraças para uma mulher de sua cultura. Seus sofrimentos pareciam intermináveis até ela finalmente dar à luz, no entanto, as condições para sustentar os filhos eram cada vez mais precárias. 




A vida em Lagos, sua nova e urbanizada terra de moradia, impõe-lhe uma adaptação para a qual não se sentia preparada. Sua vida foi diretamente atingida pelas influências da cultura do colonizador inglês, transformando os valores tradicionais de sua terra de origem.


Os percalços vividos por Nnu Ego refletem uma cultura de violenta opressão patriarcal e colonial. Buchi Emecheta revela em sua obra a prisão em que vive a mulher da Nigéria e sua clara posição de subordinação ao homem, tanto o nigeriano quanto o europeu, com relações de poder diferentes, mas sempre colocando a mulher em posição inferior na sociedade.


Com seu título irônico, As alegrias da maternidade costuma ser utilizado como material de apoio para discutir na escola o peso das expectativas da tradição sobre as mulheres e as mudanças introduzidas pelo colonialismo. 


Temas da escrita de Buchi


A maioria de seus trabalhos de ficção focam a discriminação sexual e o preconceito racial baseados nas próprias experiências como mãe solteira e mulher negra residente no Reino Unido. Sua escrita autobiográfica revela um panorama histórico das mazelas sofridas pelas mulheres durante o neocolonialismo ocorrido nos países africanos entre os séculos XIX e XX. 





Os temas relacionados a escravidão infantil, maternidade, independência feminina e liberdade por meio da educação ganharam reconhecimento de críticos e diversas homenagens. Ela classificou suas narrativas como "histórias do mundo, onde as mulheres enfrentam os problemas universais de pobreza e opressão e, quanto mais tempo permanecem, não importa de onde tenham vindo originalmente, mais os problemas se tornam idênticos". Suas obras exploram a tensão entre tradição e modernidade. Ela foi declarada como a primeira romancista negra de sucesso que viveu na Grã-Bretanha depois de 1948


Algumas das obras publicadas


Romances 


Na Vala (In the ditch - 1972) - narra as lutas da jovem nigeriana Adah (o alter ego de Emecheta), na criação dos filhos nas favelas de Londres e seu casamento com um homem londrino. Seu marido decide voltar para a Nigéria, mas ela se recusa. O homem então parte assim mesmo, abandonando sua esposa e cinco filhos. Adah passa então a depender do bem-estar do Estado e de empregos duplos para sobreviver e criar os filhos. 


Cidadã de Segunda Classe (Second Class Citizen - 1974) - Na Nigéria dos anos 1960, Adah precisa lutar contra todo tipo de opressão cultural que recai sobre as mulheres. Nesse cenário, a estratégia para conquistar uma vida mais independente para si e seus filhos é a imigração para Londres. O que ela não esperava era encontrar, em um país visto por muitos nigerianos como uma espécie de terra prometida, novos obstáculos tão desafiadores quanto os da terra natal. Além do racismo e da xenofobia que Adah até então não sabia existir, ela se depara com uma recepção nada acolhedora de seus próprios compatriotas, enfrenta a dominação do marido e a violência doméstica e aprende que, dos cidadãos de segunda classe, espera-se apenas submissão. 





O Preço da Noiva (The bride price- 1976) - Aku-nna é uma jovem Igbo que vê a vida ruir após a morte do pai. Ela precisa deixar Lagos, junto com a mãe e o irmão, e retornar ao povoado rural de Ibuza, onde vai enfrentar as angústias da adolescência e as rígidas tradições patriarcais do seu povo. Lá, ela se apaixona por Chike, filho de uma família próspera, mas descendente de escravos. Esse amor é considerado uma afronta à cultura dos Igbos. Só que o casal está disposto a tudo para ficar juntos, mesmo sabendo que esse caminho pode ser trágico.


A pequena escrava (The slave girl - 1977) - vencedor do Prêmio Jock Campbell de 1978 do New Statesman, é uma denúncia à opressão patriarcal sobre as mulheres e seus corpos, tendo como protagonista Ogbanje Ojebeta, uma menina órfã vendida pelos irmãos para um parente distante, depois que doenças e tragédias a deixaram órfã quando criança. Seus companheiros escravos tornam-se, para ela, uma família substituta. Ao se tornar mulher, ela sente a necessidade de um lar, de família, de liberdade e identidade e só então percebe que para isso deve escolher seu próprio destino. 



Destino Biafra (Destination Biafra 1982) - o primeiro a apresentar a perspectiva de uma mulher sobre a Guerra Civil Nigeriana. 


Obras autobiográficas 


Cabeça acima da água (1984; 1986) - quanto à minha sobrevivência nos últimos vinte anos na Inglaterra, diz ela, desde quando eu tinha pouco mais de vinte anos, arrastando quatro bebês frios e grávida do quinto - foi um milagre. E se por algum motivo você não acreditar em milagres, por favor, comece a acreditar, porque tive de manter minha cabeça acima da água nesta sociedade indiferente.


Kehinde (1994) - o enredo gira em torno de uma mulher que, depois de morar em Londres por dezesseis anos, é obrigada a voltar à Nigéria acompanhando o marido. Os conflitos daí resultantes em suas vidas refletem as experiências de muitas mulheres da diáspora africana moderna.


Muitos de seus romances revisitam os mesmos temas e inspiram-se em sua vida. Talvez não haja outro escritor africano em cujas obras sua própria biografia esteja tão centrada quanto na dela. Seu trabalho ilumina sua vida enquanto sua vida confirma seu trabalho.


Livros para crianças e jovens 


Buchi escreveu também para o universo infanto-juvenil, em projetos para televisão e em uma autobiografia – que inclui, entre outras histórias, as origens de As alegrias da maternidade. Titch the Cat (Arrume o gato - ilustrado por Thomas Joseph ; 1979). Nowhere to Play (Nenhum lugar para brincar, ilustrado por Peter Archer - 1980).

Sua vida e ficção se alimentam na medida em que seus romances são muitas vezes referidos como relatos “ficcionalizados” de sua vida. Embora Emecheta fosse um símbolo da mulher africana moderna, ela rejeitou ser chamada de feminista. Se fosse, teria de ser chamada feminista com uma letra minúscula 'f'.






MARY WOLLSTONECRAFT, A PRECURSORA DO FEMINISMO NA EUROPA

  Mary Wollstonecraft Godwin , escritora e filósofa inglesa,   era a segunda de sete filhos de uma família rica que empobreceu e faliu ao lo...